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Covilhã, Cidade Criativa: dos fios aos desafios

Elisa Calado Pinheiro
Licenciada em História pela FLUL, foi fundadora e primeira diretora do Museu de Lanifícios da UBI, instituição onde foi docente.

PS02 Design Têxtil e Moda


A Covilhã é uma cidade singular e única no panorama nacional. A alma de “cidade-fábrica”[1] que ainda a enforma é o resultado de um longo percurso, documentado historicamente desde a atribuição da Carta de Foral, em 1186, até ao presente, caracterizado pela presença de algumas unidades fabris de lanifícios de dimensão europeia e pela produção e consumo da lã, a fibra natural que lhe moldou a identidade.

Este milenar percurso foi-se inscrevendo no tecido urbano, a partir das habitações que serviram aos covilhanenses, simultaneamente, de lar e de oficina têxtil. A partir do século XV, a produção dos “panos covilhães” estimulou o aperfeiçoamento das operações de acabamento e de tinturaria, começando a ser construídas as primeiras oficinas especializadas nestas operações, sustentadas por capitais maioritariamente de cristãos-novos. Por intervenção direta do Estado foram criadas na Covilhã duas importantes manufaturas, a primeira no século XVII e a segunda no século XVIII, que contribuíram para fortalecer a produção de lanifícios a nível nacional. A partir de então, o tecido urbano começou a ser pontuado pela construção de novas fábricas, de iniciativa privada, que, na década de trinta do século XX, atingiram a centena e meia. A cidade ganhou o estatuto de centro histórico dos lanifícios portugueses, vindo a ser igualmente reconhecida a nível europeu. Como em todas as cidades e regiões de mono-indústria fortemente enraizada no território, o complexo mundo fabril moldou o microcosmos covilhanense. Conformou fisicamente o território e gerou uma mundividência sedimentada pela dicotomia entre paisagens de planície e de montanha e pelas experiências e ritmos de vida que imprimiu a gerações continuadas, transformando a Covilhã numa cidade de cores fortes e profundos contrastes. Estes mantiveram-se cadenciados pelas fugazes pausas e os absorventes tempos de trabalho, pautados pelos silvos das sirenes das fábricas e pelo matraquear dos teares que ecoaram, num tempo longo, pelas ruelas estreitas da vila que, tardiamente, e em razão da indústria, se fez cidade. Permaneceram bem visíveis na acentuada bipolarização social vivenciada, confrontando agricultores e pastores, negociantes e fabricantes, cristãos-novos e cristãos-velhos e, sobretudo, patrões e operários. Estas dolorosas fraturas sociais só a partir de inícios do terceiro milénio começaram lentamente a esbater-se, acompanhando o ressurgimento de uma cidade que começou a projectar-se como “amável”, após a profunda alteração do paradigma até então vigente, em resultado da crise estrutural da mono-indústria de lanifícios que a moldara e a obrigou a reinventar-se.

A História e a memória permanecem inscritas no território  e nas mundividências dos covilhanenses, impregnando o nosso presente de densos fios do passado e de promissores desafios de futuro. Um tão impactante passado industrial é não só a mais significativa referência identitária da comunidade covilhanense, mas, igualmente, um património a preservar devido à dimensão nacional e europeia desta herança milenar. Importa acentuar o genius loci e o carácter singular da paisagem construída, porquanto só por esta via esta histórica paisagem industrial poderá vir a transformar-se numa verdadeira “paisagem, cultural evolutiva”, tal como a vimos defendendo [2].

São inúmeras as fontes materiais e imateriais resultantes deste longo processo evolutivo que importa continuar a preservar com o recurso às mais diversas metodologias científicas. Impõe-se, no presente, avaliar, atualizar e colocar ao serviço dos cidadãos os resultados dos processos de patrimonialização já realizados aos mais diversos níveis na Covilhã, desde as exemplares intervenções de musealização, às de inventariação patrimonial, passando pelos registos de História Oral e a criação de bases de dados de apoio ao Design,  e concretizar os que urge vir a implementar, concitando o empenho das instituições locais, regionais e nacionais vocacionadas para esta imperiosa intervenção de “conservação ativa” do património industrial covilhanense. Para o efeito ela terá que ser assumida pelos orgãos do poder político local, pelas empresas e ainda através da participação ativa dos cidadãos.

A partir de então, poderá vir a concretizar-se o lema escolhido para nortear a Autarquia covilhanense – “Covilhã: a tecer o futuro”, uma vez que só fortalecendo os fios da História se poderão enfrentar com esperança os desafios perspectivados para os novos tempos.

Como defendeu Fernando Pessoa “ (…) o presente é todo o passado e todo o futuro/ E há Platão e Virgílio dentro das máquinas e das luzes eléctricas (…) ”[3] e como, algum tempo depois, subscreveu T. S. Elliot ”O tempo presente e o tempo passado/ Estão ambos presentes no tempo futuro/ E o tempo futuro contido no tempo passado”[4].

Alicerçada pelos fios da memória e da História, será esta uma frutuosa seiva a servir de fermento aos processos criativos que projectarão vigorosamente a Covilhã como uma singular Cidade Criativa.


[1] GERALDES, Manuel Nunes (1880) – A Covilhã no Centenário, Lisboa: Lallement Fréres Typ., p. 20.

[2] PREITE, Massimo (2008) – “Du paysage industriel au paysage culturel évolutif”. Patrimoine de l’industrie: resources, pratiques, cultures. The International Commitee for the Conservation of the Industrial Heritage, TICCIH (revue), Torino, Italy n.º 20, [53-59].

[3] “Ode Triunfal”, 1914, Álvaro de Campos, Poemas.

[4] Tradução do original “Time present and time past/Are both perhaps present in time future,/And time future contained in time past./If all time is eternally present/All time is unredeemable“. T. S. Eliot, “Burnt Norton”, Four Quartets, 1935. PROENÇA, Sérgio Barreiros ( 2014) – “A resistência da forma urbana. A persistência dos traços na forma da cidade”. Cadernos de Morfologia urbana. Estudos da cidade portuguesa. O tempo e a forma 2. Lisboa: Argumentum, p. 33.